A Falácia da Aplicabilidade Restrita da Imunidade Tributária das Entidades Beneficentes de Assistência Social apenas às Pessoas Jurídicas de Direito Privado
A Fazenda Nacional desenvolveu tese defensiva em processos
judiciais ajuizados por consórcios públicos de direito público e outras
entidades públicas da administração indireta municipal que buscam o direito à
imunidade tributária prevista no art. 195, § 7º, da Constituição Federal, que
vem ganhando aceitação de parte da magistratura federal brasileira, em
especial, da 4ª Região.
A tese consiste no argumento de que a referida imunidade
destinar-se-ia apenas a entidades beneficentes de assistência social de direito
privado e, portanto, as entidades beneficentes de direito público
não teriam direito ao referido benefício fiscal constitucional.
Para perfeita compreensão da questão, reprisa-se o
dispositivo constitucional do tema em questão:
Art. 195. [...] § 7º São isentas de contribuição para a
seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam
às exigências estabelecidas em lei.
A tese defensiva da Fazenda Nacional está alicerçada na Lei
Federal n.º 12.101/09, cujo artigo 1º é expresso em disciplinar que:
Art. 1o A certificação das entidades
beneficentes de assistência social e a isenção de contribuições para a
seguridade social serão concedidas às pessoas jurídicas de direito privado,
sem fins lucrativos, reconhecidas como entidades beneficentes de assistência
social com a finalidade de prestação de serviços nas áreas de assistência
social, saúde ou educação, e que atendam ao disposto nesta Lei.
Como se percebe, o dispositivo acima refere que a
certificação das entidades beneficentes de assistência social (CEBAS) será
concedida apenas às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que
prestem serviços nas áreas de assistência social, saúde e educação.
Com efeito, o argumento defensivo da Fazenda está devidamente
embasado na lei e, desse modo, apresenta-se, em exame perfunctório, como
fundamento legítimo para justificar a improcedência de processos judiciais
declaratórios de imunidade tributária ajuizados por entidades beneficentes
públicas, que, não obstante, realizam inequivocamente o mesmo
trabalho de caráter beneficente, ou seja, gratuito e voltado para atendimento
de pessoas carentes, na área da assistência social, saúde e educação, que suas
colegas de direito privado.
Como afirmado acima, em nosso entendimento, a tese apresenta-se
válida apenas ao crivo superficial porque sucumbe fragorosamente sob análise
mais acurada que a boa hermenêutica exige quando se trata de definir o sentido
e alcance de imunidades tributárias. Explica-se.
Como sabemos, no que tange às questões afetas à imunidade
tributária, a exegese jurídica não se resume em verificar tão somente a subsunção
literal do caso concreto à hipótese constitucional. Fosse assim, a Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos, empresa pública, não faria jus à extensão
da imunidade recíproca prevista no § 2º do artigo 150 da CF pela simples
razão de não ser autarquia ou fundação instituída ou mantida pelo Poder
Público, mas empresa pública.
Veja o dispositivo constitucional que trata da imunidade
recíproca dos entes federativos:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao
contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:
[...]
VI - instituir impostos sobre: (Vide
Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
a) patrimônio, renda ou serviços, uns
dos outros;
§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias
e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere
ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais
ou às delas decorrentes.
Entretanto, a definição do sentido e alcance da referida
norma contida no dispositivo constitucional acima transcrito, como não poderia
deixar de ser, vai muito além da tacanha interpretação literal, adentrando em
nível mais profundo e adequado da boa hermenêutica jurídica, socorrendo-se do
emprego da interpretação teleológica para identificar os valores sociais
a serem protegidos pela imunidade no caso concreto. Não por menos que a abordagem
finalística na definição do real sentido e alcance de dado benefício fiscal
constitucional é a metodologia empregada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Nesse sentido, essencial destacar preciosa lição do então Ministro
Marco Aurélio em seu voto no RE 566.622 (Repercussão Geral, Tema 32), fl.
8 da decisão proferida:
“[O]s precedentes revelam, de modo inequívoco,
a linha metodológica do Tribunal – a interpretação teleológica das imunidades.
É importante destacar a necessidade permanente de compatibilizar a abordagem
finalística das imunidades com o conjunto normativo e axiológico que é a
Constituição. Com a Carta compromissória de hoje, existe uma variedade de
objetivos opostos, estabelecidos em normas de igual hierarquia. Nesse âmbito,
de antinomias potenciais, o elemento sistemático adquire relevância prática
junto ao teleológico. Sob tal perspectiva, “cada norma jurídica deve ser
interpretada com consideração de todas as demais, e não de forma isolada”,
presente a busca pela harmonia e integridade sistêmica da Constituição. Combinados
os elementos sistemático e teleológico, a interpretação deve cumprir função
harmonizante, influenciada, prioritariamente, por princípios como o da
“dignidade da pessoa humana, da igualdade, do Estado Democrático de Direito, da
República e da Federação” (SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO,
Daniel. Direito Constitucional. Teoria, História e Métodos de Trabalho. Belo
Horizonte: Fórum, 2012, p. 415-416). (Grifamos)
Essa diretriz hermenêutica – a de definir o
alcance da norma constitucional de imunidade segundo a compreensão da função
política e social a ser alcançada e tendo em conta a Constituição como um todo
– deve governar a leitura do § 7º do art. 195 da Carta e a solução quanto à
forma e aos limites de possibilidades do estabelecimento de regras que venham a
regulamentar o exercício da imunidade. (Grifamos)
O que se tem quanto à imunidade tributária do
§ 7º do artigo 195 da Carta da República? Segundo o preceito, são “isentas”
de contribuição à seguridade social as entidades beneficentes de assistência
social que “atendam às exigências estabelecidas em lei.” O equívoco da redação
já foi superado pelo Supremo na mencionada Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. º 2.028/DF, relator ministro Moreira Alves. Não se
trata de isenção, mas de imunidade, autêntica “limitação ao poder de tributar”.
O dispositivo constitucional versa dois
requisitos para o gozo da imunidade: ser pessoa jurídica que desempenhe
atividades beneficentes de assistência social e atender a parâmetros legais.
(Grifamos)
[...]
Como fez ver o ministro Moreira Alves, na citada
Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.028:
“Relativamente à questão de fundo, atente-se
para o caráter linear e abrangente do § 7º do art. 195 da Constituição Federal:
[...]
No preceito, cuida-se de entidades
beneficentes de assistência social, não estando restrito, portanto, às
instituições filantrópicas.
Indispensável, é certo, que se tenha o
desenvolvimento da atividade voltada aos hipossuficientes, àqueles que, sem
prejuízo do próprio sustento e o da família, não possam dirigir-se aos
particulares que atuam no ramo buscando lucro, dificultada que está, pela
insuficiência de estrutura, a prestação do serviço pelo Estado. (Grifamos)
[...] Daí a razão de o constituinte ter
assegurado a imunidade a essas pessoas em relação tanto aos impostos como às
contribuições sociais, tudo a partir
da impossibilidade de tributar atividades típicas do Estado em favor da
realização de direitos fundamentais no campo da assistência social. Em última
análise, são os direitos sociais, em especial o amparo à população mais
carente, a fonte de legitimação e diretriz interpretativa dessa regra
constitucional de imunidade. (Grifamos)
[...]
A definição do alcance formal e material do
segundo requisito, a observância de “exigências estabelecidas em lei” deve, portanto,
considerar o motivo da imunidade em discussão – a garantia de realização de direitos fundamentais sociais. Qualquer
interpretação que favoreça obstáculos ao alcance desse propósito há de ser
evitada, cabendo prestigiar aquela que beneficie a conquista da função política
e social própria do § 7º do artigo 195 do Diploma Maior. (Grifamos)
Portanto, como visto, a lição hermenêutica vertida nos
excertos do voto do Min. Marco Aurélio, Relator do RE 566.622 (Repercussão
Geral, Tema 32), acima transcritos, levam à conclusão inequívoca da invalidade
da tese defensiva da Fazenda Nacional pela sua evidente insubsistência frente à
interpretação teleológica que a definição do sentido e alcance da
imunidade do § 7º do art. 195 da Constituição Federal exige do operador
jurídico.
Nesse sentido, inclusive, foi o voto do Ministro Marco
Aurélio no julgamento do AgR-AgR no RE
831.381, de relatoria do Ministro Roberto Barroso, julgado em 09/03/2018, cujo excerto, segue abaixo
transcrito pela sua pertinência ao tema em discussão:
O desfecho da demanda passa pelo artigo 195, § 7º, da
Constituição Federal, a versar a imunidade, relativamente às contribuições para
a seguridade social, das entidades beneficentes de assistência social, desde
que atendam às exigências estabelecidas em lei
complementar – precedente: recurso
extraordinário nº 566.266 (sic)[1],
de minha relatoria, julgado em 23 de
fevereiro de 2017. Conforme consignei, é
preciso partir de interpretação teleológica para a solução das
controvérsias surgidas em matéria de imunidade tributária, buscando-se
sempre a melhor realização dos valores protegidos. No caso, a norma
constitucional tem por objetivo atrair a participação da sociedade civil para a
prestação de serviços com relação aos quais se verifica atuação deficiente do
Estado. Se as entidades beneficentes
podem usufruir de tal imunidade, não se revela consentâneo com a ordem jurídica
impedir que pessoas jurídicas de direito público também o façam, quando exercem
diretamente as mesmas atividades. (Grifei)
Deste modo, pode-se cabalmente afirmar que, em se tratando
de imunidade, é indispensável que o julgador aplique interpretação
teleológica, objetivando identificar o valor social que o benefício
fiscal constitucional pretende proteger, sendo absolutamente irrelevante e
inócuo a tal desiderato estabelecer restrições de fruição fundadas na natureza
da pessoa jurídica (de direito privado ou de direito público) que a promove.
Tanto é assim, que no caso da EBCT, o Supremo Tribunal
Federal (STF) reconheceu, no julgamento, em regime de repercussão geral, do RE
773992 (Relator Ministro Dias Tóffoli, Tribunal Pleno, 14/10/2014), o
direito da EBCT à imunidade recíproca em razão do valor social protegido: a
integração nacional, indiscutivelmente presente no serviço postal dos
Correios, em que pese tratar-se de empresa pública. Veja-se:
EMENTA Recurso extraordinário. Repercussão geral
reconhecida. Tributário. IPTU. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos
(ECT). Imunidade recíproca (art. 150, VI, a, da CF). 1. Perfilhando a cisão
estabelecida entre prestadoras de serviço público e exploradoras de atividade
econômica, a Corte sempre concebeu a Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos como uma empresa prestadora de serviços públicos de prestação
obrigatória e exclusiva do Estado. 2. A imunidade recíproca prevista no
art. 150, VI, a, da Constituição, alcança o IPTU que incidiria sobre os imóveis
de propriedade da ECT e por ela utilizados. 3. Não se pode estabelecer, a
priori, nenhuma distinção entre os imóveis afetados ao serviço postal e aqueles
afetados à atividade econômica. 4. Na dúvida suscitada pela apreciação de um
caso concreto, acerca, por exemplo, de quais imóveis estariam afetados ao
serviço público e quais não, não se pode sacrificar a imunidade tributária do
patrimônio da empresa pública, sob pena de se frustrar a integração nacional.
5. As presunções sobre o enquadramento originariamente conferido devem militar
a favor do contribuinte. Caso já lhe tenha sido deferido o status de imune, o
afastamento dessa imunidade só pode ocorrer mediante a constituição de prova em
contrário produzida pela Administração Tributária. 6. Recurso extraordinário a
que se nega provimento. (RE 773992, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal
Pleno, julgado em 15/10/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO
DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-2015)
Desse modo, a tese da Fazenda Nacional fundada no argumento
de negar direito à imunidade tributária aos consórcios públicos de direito
público pela singela razão de não serem pessoas jurídicas de direito privado
como exigido pelo art. 1º da Lei Federal n.º 12.101/2009, não se sustenta pelas
seguintes razões:
1ª – Desde 23/02/2017, quando o STF julgou o RE 566.622,
consolidou-se, de forma vinculante, o Tema 32, que, em obediência
ao art. 146, II, a, da Constituição Federal, disciplina expressamente que:
Tema 32 do STF - A lei complementar é forma
exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de
assistência social contempladas pelo art. 195, § 7º, da CF, especialmente
no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas
(grifo nosso)
Contudo, a tese da Fazenda Nacional, ora examinada, funda-se
em dispositivo infraconstitucional, mais especificamente no art. 1º da Lei
Ordinária n.º 12.101/09, para justificar a vedação à concessão de
imunidade tributária a pessoa de direito público. Ocorre que o referido
dispositivo perdeu sua eficácia para disciplinar a matéria a partir do advento
do Tema 32 (23/02/2017), que consagrou o entendimento de que a definição
do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social deva ser
veiculada por meio de lei complementar. Assim, o regramento que
deve ser obedecido para concessão da imunidade tributária prevista no § 7º do
art. 195 da CF, na falta de lei complementar específica, é, indiscutivelmente,
o art. 14 do Código Tributário Nacional (CTN) que foi recepcionado pelo ordenamento
inaugurado pela Constituição de 1988 com status de lei complementar.
Além disso, ainda que não se tomasse em conta a vinculação obrigatória
do intérprete ao Tema 32 do STF, forçoso reconhecer que a Lei 12.101/09 restringiu
inconstitucionalmente à concessão da(o) CEBAS às pessoas jurídicas de direito
privado ao estabelecer restrição que o Texto Constitucional não fez. Assim, a
tese do Fisco, aparentemente legítima, sob o ponto de vista
infraconstitucional, não se sustenta sob o prisma constitucional, em especial,
da regra estabelecida pelo Tema 32 do STF.
2ª – Além disso, a tese do Fisco também sucumbe diante da
boa hermenêutica que, para muito além da limitada interpretação literal
aplicada pela Fazenda Nacional na delimitação do sentido e alcance da referida
imunidade, exige o emprego da interpretação teleológica, conforme
consignado nos RE 773992 e RE566.622 (Tema 32), ambos julgados em
regime de repercussão geral, o que implica estrita observância por todos os
juízes e tribunais, nos termos do inciso III do art. 927 do Código de Processo
Civil.
Por fim, felizmente, a equivocada tese da Fazenda Nacional
começa a ruir perante o correto escrutínio do egrégio STF. Exemplo disso, encontra-se
no RE1308462, de relatoria do Min. Nunes Marques, no qual, a 2ª Turma,
em 05/05/2021, desproveu o referido recurso extraordinário interposto pela Fazenda
Nacional contra decisão do TRF5 que declarou ao Consórcio Intermunicipal do Rio
Grande do Norte (COPIRN), pessoa de direito público, atuante na área da saúde a
mais de 122 municípios, o direito à imunidade tributária em tela, com base nos
argumentos aqui lançados, indicando que nossa Suprema Corte está atenta em seu
fundamental papel de zelar e interpretar a nossa Constituição, que, no caso
concreto, significou assegurar a imunidade tributária do § 7º do art. 195 da CF
a um consórcio público de direito público.
[1]
Houve erro de digitação no número do RE. O Exmo. Ministro Marco Aurélio
referia-se ao RE nº 566.622, de sua relatoria, votado em regime de repercussão
geral em 23/02/2017.
Excelente texto! Muito esclarecedor! Continue enviando boas informações!
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